Fotografia de ©Ana Rita Pinto
Tinha mãos pequenas, mil berlindes. Tinha uma vontade grande de os lançar para fazer uma história com um final feliz.
Um dos seus encantos? Brincar ao faz de conta no pátio do imaginário até que a chamassem.
Então crescia e guardava-o no bolso do bibe que sabia que vestiria, logo mais, quando voltasse a ter mãos pequenas, mil berlindes e uma vontade grande de fazer uma outra história…
Fotografia de ©Ana Rita Pinto
Permanece muda, distante, tentando apanhar os fragmentos das nascentes de todos os rios. Perene, vagueia, e, por mais que procure, não é o chão da verdade que encontra.
Tudo é agora efémero, menos o nada que lhe consome os passos porque há frases que doem, momentos que não deveriam existir e a certeza de que não mais terá mãos pequeninas.
Aquele tempo fora deles. Agora, separados pela distância dum, até um dia, poderia olhá-lo, pensá-lo ali…
Chorava, sem vergonha de esconder as maçãs do rosto de tanta saudade e prometeu que, pela bonança dum passeio pelo sonho, valeria a pena esperar.
Fotografia de © Irina Kuneva
Talvez que chegasse até ele
O barulho da cascata,
O seu pranto.
Lágrimas que rebolavam
Que caíam
Em cataratas de soluços.
Estava já longe do que viveram,
Estava no leito,
Ela e toda a lembrança,
Iluminada por uma lua cheia.
Chorava
Mas não o deixaria ir,
Sair-lhe do pensamento,
Ainda que se sentisse
Encharcada por tanta tristeza,
Ainda que não houvesse tido um tempo aliado.
[Mais tempo,
Todo o tempo do mundo.]
Ficaria até ao fim,
[Ele que lhe dissera que não havia fins,
Que coexistiriam nos interregnos,
E, que tudo repetiria...]
Imaginando-o a pensá-la
Tal qual um mar de águas aquietadas
Como ela tanto queria, ter ido com ele, ver o mar!]
- Que voz! Ainda a dormir?
- Ouve lá, estás a ligar-me só para isso?
- Calma! Vê se te pões pronto porque te vou buscar daqui a meia hora!
- Ei! Qual é?... Não ‘tou numa de sair, meu!
- Ai te garanto que vais!
- Mas porque raio é que havia de ir, dizes-me? É sábado! Já me basta toda a semana a aturar aquelas bestas!
- Recordas-te da foto que te pedi? Aquela, da tua avó com a fotografia em que estás tu e as tuas irmãs?
- Vais desculpar-me, Manel! Mas, eu sabia que havia um concurso a decorrer promovido por uma revista muito conhecida, e, enviei-a.
- Pá! Um dos temas era “Emoções”, e, eu sabia que a fotografia tinha mais do que hipóteses de ganhar! E ganhou, Manel! Vais ter a tua avó na capa da revista! Vais ganhar uma pipa de massa e a organização quer falar “comigo”, quer dizer, contigo, agora, no lançamento da exposição.
Fotografia de © António J.S.
Talvez mais, pelo que as irmãs, sobretudo a sua Belinha, a quem sempre fora sempre mais chegado, contava.
Que os havia deixado, era muito pequeno, incapaz de perceber muito bem, naquela época, porquê.
Que tinham ficado com uma avó que não era de mimos, mas de muito trabalho, muita garra.
À maneira dela, era assim que fora a melhor mãe e apesar dos solavancos que passaram, era dela, daquele rosto “amarrotado”, como ele dizia, que se lembrava.
Da mãe? Apenas um nome, um vulto, apenas o que lhe fora contado, o que fora escutando enquanto na aldeia viveu, até ser a altura de poder sair, de procurar a cidade, voar sozinho.
Quando foi da construção da barragem, encheu-se de gente de fora, sobretudo de muitos homens.
Na aldeia todos a olhavam, todos a cobiçavam, gulosos. Bonita mulher, aquela que lhe diziam ser a sua mãe biológica.
A avó, já viúva, sempre de negro vestida, era de poucas palavras.
O marido, seu avô, ficara por terras de África e só se lembrava dele de um retrato guardado no baú de madeira de ripas, à entrada da casa.
Lembra-se bem das duas nalgadas que a sua avó lhe dera ao encontrá-lo a vasculhar entre os lençóis amarelecidos de linho, umas cartas amarelas, tipo telegrama. Cartas do avô para ela escritas por um vizinho de beliche, lá na camarata, na Guiné.
De estar tudo guardado numa caixinha de madeira, mais umas medalhas, uns botões de farda dourados; de não ter percebido porque ela ficara assim, tão zangada.
Tirara-lhe tudo das mãozitas pequenas, metera tudo de novo na caixa e fechara o baú.
Pequenito, foi a correr atrás da sua Belinha, pedir-lhe colo.
“Que asneira tinha ele feito? “, perguntara-lhe a sua irmã, sempre tão docinha com ele. “Que tinha mexido na mala de madeira da avó, a da entrada, que tinha visto aquela caixinha, que a abriu e estavam lá umas coisas. Que a avó veio por trás dele e lhe dera duas sapatadas, que tinha ficado toda zangada e que se ele voltasse a abrir a mala que nem sabia de que terra seria! Mas que a vira depois a chorar e ele não percebeu porquê.
A irmã, com muito carinho explicou-lhe que o avô não tinha conseguido escapar, tal como os outros amigos da aldeia, não tinha conseguido passar, a salto, para Espanha e tivera que ir cumprir o serviço militar para África.
Tinham tido duas filhas, uma que morrera cedo, ainda pequena, assim, da idade dele, com umas febres muito altas. Que lhe haviam posto papas de linhaça, mas que não havia médico na aldeia, e, a menina não se salvara. Que nem o avô a conhecera, porque ficara por lá, longe, e, nem campa havia dele, lá no cemitério da aldeia.
Apenas a da sua tia, que a avó ia limpar no dia de todos os santos.
Não havia ninguém que não a achasse um primor de mulher.
O rapazito, ainda com duas grandes lágrimas a sulcar-lhe a cara, já estava atento, de olho bem aberto.
Isabel era a irmã preferida. As outras estavam a estudar na cidade, em casa dum tio, irmão do pai, que ele não conheceu.
Mas isso era uma outra história que a sua Belinha lhe contara há algum tempo.
Com as costas da mão, limpou o nariz, depois duma grande fungadela, secando-a de seguida à camisola, já meio enfarruscada.
A sua irmã sorria mas ele queria ouvir mais, queria saber porque era assim a avó, sempre tão triste, sempre de tão poucas falas.
Fotografia de © António J.S.
A avó viu-se muito atrapalhada porque o dinheiro era pouco, e, sozinha, a tomar conta da casa, das filhas, a ter que amanhar a terra, guardar o gado, trabalhar no tear, sem ajuda de ninguém, era difícil!
À sexta-feira, lá ia ela à venda do Ti Matias a ver se havia carta do seu homem.
Quando havia, era vê-la ali, à entrada, sentada, a escutar o Ti Matias a ler, a ler, aquelas cartinhas amarelinhas. Ela ia chorando, ia rindo. Depois, pedia-lhe para ele lhe responder.
Santo homem, o dono da venda. Sabia-a só, sem ninguém que por ela olhasse, com as duas filhas.
Entre duas malgas de vinho e uns bagaços que ia servindo aos compadres, lá ia escrevendo da melhor que maneira que podia, com umas letras encavalitadas, contando de como ia a vida na aldeia, de como estavam lindas as meninas, de como ela esperava que ele voltasse dali a uns meses.
Naquela sexta-feira, fora o Ti Matias lá a casa. Não levava carta, mas, um embrulho.
A Avó Mariquinhas andava no campo a amanhar a erva para deitar ao gado.
Viu-lhe o sobrolho carregado, chamou as filhas, mandou-o sentar, perguntou-lhe se queria beber alguma coisa.
Que não, que deixara a venda só e que não podia demorar. Que fora a G.N.R. que lhe levara aquele embrulho para entregar a uma tal de Maria Costa. Que o seu marido tinha morrido como um Herói a lutar pela Pátria. Que não houve forma de enviar o corpo, que lamentavam.
As meninas choraram muito e desde aquele dia, a Avó Mariquinhas vestiu-se de preto, amarrou o lenço na cabeça e ninguém mais a viu rir.
Depois foi a enterrar a sua tia, irmã da mãe.
Que era um anjinho, não era? ,perguntava o Manel.E sua irmã dizia-lhe que sim.
E a mãe? Porque tinha ido embora?
Ficavam por ali, sentados no fundo das escadas, ele no seu colo, ela muito terna, limpando-lhe a carita, fazendo-lhe festas, enchendo-o de mimo.
Estava ali, ainda não refeito pela notícia recebida pelo amigo, e toda uma história, uma vida de gente que era sua, num passado que fizera os possíveis por deixar quieto, mas que saltara para a almofada ao lado da dele.
Sempre fora muito observador. Na escola, ainda petiz, a professora dizia que se houvesse hipótese, deviam mandá-lo para a cidade, para seguir os estudos.
A Avó, já de idade avançada, mandara dizer ao irmão do seu genro (sim, que apesar da filha ter decidido abalar para as “Estranjas”, que o sobrinho, o Manuel, era um rapaz esperto, que teria futuro, mas não ali, naquela aldeia metida na Serra.)
Que levariam o rapaz, que o meteriam no colégio, na cidade. Que ela poderia ficar sossegada, porque o estabelecimento era de cariz religioso, muito severo, e se ele desse mostras do que valia, teria futuro.
Ainda ouvia o choro da sua Belinha, via-a a meter meia dúzia de peças de roupa num saco, entre choro e pedido de juras de que ele lhe escreveria a contar de como era a cidade para onde ia.
Lembrava-se de ir encafuado, no banco de trás do carro grande, de não conseguir olhar, de não acenar, de não atirar os beijos àquela que fora o seu colo.
- Havia feito o exame de admissão, a professora dizia que ele tinha muito jeito para desenho, para artes, que gostava muito de ver as fotografias das revistas que ela levava para a escola. Que ele gostaria de um dia poder tirar retratos, assim, bonitos, como aqueles que ela lhe mostrava.
- Ora, então vamos ter um fotógrafo, é isso? – Continuou o tio.
- Eu não vou ver a minha irmã nunca mais? – Perguntara, aflito, o Manel.
- Vais, pois. Prometi à tua avó que te traria à aldeia, mais as tuas duas irmãs, no Verão, nas férias grandes.
Mas agora ia ser uma vida nova para o menino! Ia tornar-se gente…
- Então, Manel? Desligaste? Ficaste sem bateria?
- Não, pá, desculpa, apanhaste-me de surpresa. Sei lá o que se passou! Devias ter-me dito que ias enviar a fotografia.
- Se tivesse dito já sabia que te oporias e mais uma vez, adiar-se-ia um sonho, Manel!
Já estás pronto? Vê se te preparas, porque a tua vida vai dar uma volta de 180º, já pensaste bem nisso?
Passo aí daqui a 45 minutos, está bem para ti? Não é preciso traje de gala, meu! Mas afina bem a caneta porque vão pedir-te autógrafos e…não só, podes crer!
O colégio era em regime de internato. Os padres, severos, sobretudo o director.
Quando chegou, sentira muitos pares de olhos que o miraram de cima abaixo.
- Já viste? Parece um labrego! Vai dar-nos que fazer! – Conseguiu ouvir de um grupo de colegas.
- Vê te pões fino! Aqui, quem chega de novo tem que obedecer-nos. Ai de ti se “mijas fora do sapato”! Levas um arraial de pancada que nem sonhas e ainda te mandamos ao gabinete do Director, para o correctivo final. Livra-te de arrebitares o cachimbo, meu parolo das berças!
Mostraram-lhe a camarata onde iria dormir, o encarregado, um padre já mais velhinho, cara redonda, simpático.
Foi mostrar-lhe a sala onde teria as aulas, a sala de estudo, a capela.
Levou-o ao refeitório, mostrou-lhe as casas de banho, colectivas.
Como faria para falar com a avó, com a irmã, a sua Isabelinha?
Escreveria as cartas que seriam lidas pelo director e se, nada houvesse a emendar, encarregar-se-iam de as fazer chegar à sua aldeia.
Tinha aprendido, não só nos bancos da sua escola mas com a sua irmã, a ouvir e a saber contar uma história como ninguém.
Desde logo os professores se aperceberam do seu jeito, da forma como observava todos os pormenores.
O colégio tinha uma área de artes, onde podiam desenhar, iniciar-se na fotografia e o nosso Manel, cheio das imagens, das fotos que a sua primeira professora lhe mostrara, foi aprendendo a manejar a máquina fotográfica.
Aqueles que, quando ele havia chegado, o tinham ameaçado, acabaram por perceber que ele tinha mesmo muito jeito e o Jornal que decidiram fazer tinha fotografias que ele lhes fazia.
Aos Domingos, o seu tio ia buscá-lo, almoçava lá em casa, e começara a conversar com as suas duas irmãs, a Maria e a Madalena (esta última com o nome da tia que havia falecido cedo, tal como a sua Belinha lhe havia contado). Não conseguia ter grandes afinidades com qualquer uma delas. Era recíproco. Pouco importava já que a que tinha, a que lhe era tão queria, preenchia-lhe todo o espaço e ocupava-lhe o coraçãozito de rapaz.
Ia ver a sua Belinha, iriam juntar-se os quatro irmãos, lá na casa da Avó Mariquinhas.
Chegaram e um ror de garotos corria atrás do carro! Sabiam que vinha o Manel, queriam ver como é que ele estava, agora que era um menino da cidade.
Parado o carro à porta da sua casa, o coração bateu mais depressa. A sua Avó lá estava, e, sorria, de mão por cima da sua Isabelinha que se havia tornado numa rapariguinha tão bonita!
O olhar da senhora ensombrou-se por momentos. Pena que não estivessem as filhas. Uma porque Deus decidira chamá-la e a outra, porque os trocara por uma vida em terras de França. Mandava dinheiro, era certo. Necessidades não passavam, até já tinha televisão, que o ‘Ti Matias da Venda lha havia posto lá em casa, para ela se distrair, nas noites de invernia.
A última carta que havia recebido da mãe daqueles quatro meninos, trazia novas de um outro casamento. Que por França ficaria, que nunca poderia voltar ali, onde o homem, o pai daquelas crianças a abandonara, grávida do mais novo, do Manel, do rapaz que ela tanto desejara.
Ah! Que importava? Tinha-se virado sozinha, tinha sabido cuidar da vida, e, se não os cobria de beijos, bem lá dentro, no seu coração, mantinha-os juntos, muito seus, tal como o seu homem havia pedido.
- Ora, ponham-se todos à volta do bolo! Vamos tirar um retrato. ‘Ti Maria! Vá! Junte-se a eles, aos seus netos!
Que não, que já era velha, que estragaria o retrato. Que ficaria a vê-los, dali, mas que tinha que lhe prometer que lhe enviaria aquela fotografia.
Fotografia de © António J.S.
No seu regaço, uma caixa. Agarrou-se à sua Belinha, deu-lhe um abraço apertado, prometeu que a viria buscar.
Que era bom aluno, tinha conseguido uma bolsa e que era no Porto, numa Cooperativa, a Árvore.
Que lhe mandaria notícias, sempre, mas, que logo que pudesse a levava para a cidade para morar com ele.
Mais beijos, mais lágrimas, uma carta que chegou, que o ‘Ti Matias, já velhinho, levou à casa de pedra muito lavada, com um retrato de quatro meninos ao redor dum bolo.
Passaram-se anos, muitas cartas trocadas. A sua Belinha tinha casado. O seu cunhado, o médico que fora trabalhar para a aldeia, cuidava dela como ninguém, como ela merecia, com tanto carinho. Tinha um sobrinho, um rapazola de olho meigo, o Manuel Maria. (Manuel por causa dele, Maria, por causa daquela Avó que sem lhes dar beijos, dera-lhes tanto, tanto, dedicara-lhes a sua vida!)
O Manel acabou o seu curso da melhor forma, com o melhor trabalho!
Tinham gostado muito! Um preto e branco, uma mão cheia de uma vida para contar, cheia de quatro meninos com a cabeça cheia de sonhos…
Havia recebido um telefonema da irmã. Que viesse, que a Avó Mariquinhas queria falar com ele.
Cá em baixo, no fundo das escadas daquela casa de pedra, agora com janelas com gelosias verdes e cortinas de linho com barras de crochet, esperava-o um rapazito sorridente, uma mulher linda, com os olhos mais lindos que ele jamais esqueceria e um amigo, o seu cunhado.
Depois dos abraços, de pegar no rapaz e pô-lo às cavalitas, subiram os degraus.
Na cozinha, sentada na cadeira de baloiço, estava a sua Avó, toda de negro vestida, de mantinha nos joelhos.
As achas crepitavam e sentia-se no ar um aroma a sopa de feijão de fazer crescer a água na boca.
Olhou-a. Nunca a tinha visto de cabeça descoberta, apenas se lhe viam uns cabelos alvos, mais alvos que a neve que já cobria os muros da aldeia.
- Então, ‘Ti Mariquinhas? Como estamos? Tinha saudades minhas?
- Nem sabes! – disse-lhe a irmã. Fala pouco, agora. Mas quando olha aquele retrato, passa os dedos pela tua cara e vemo-la sorrir.
- Ora então, vamos fazer com que o sorriso se estenda a todos nós.
E, com a maior das ternuras, abriu a caixa, pegou no retrato e pediu à sua Avó que abrisse a sua mão.
Ela fez um gesto, disse que era uma mão feia, amarrotada, como ele lhe dizia quando era pequenito….
E ali, naquela cozinha, apenas com a luz que vinha da lareira onde acabava de cozer a bela sopa de feijão, ouviu-se um “clic”
- Avó vai ser com a sua mão, com esta história de vida que acabarei o meu curso.
Não nos deu beijos, deu-nos muito mais do que isso. Deu-nos a sua coragem, a sua força, o nunca desistir.
Não me lembro da minha mãe, da sua filha. Guardo comigo a minha Belinha, aquele colo para onde sempre corri.
Mas não vou esquecer nunca esta mão, cheia de caminhos que vão dar ao melhor lugar do mundo: Um coração grande, doce, verdadeiro, o seu, minha querida Avó!
Fotografia de © Martin Mittermair.
Olhou o relógio. Bolas! O João devia estar mesmo a chegar! Voou! Tomou um duche rápido, vestiu-se, olhou em volta, deu uma última olhada à caixinha de madeira que trouxera, que a Avó fizera questão de lhe dar, beberricou a correr uma chávena de café e ouviu a buzina do carro do amigo lá em baixo.
Pegou no saco de fotografia, levou a mão ao fio de ouro, presente da sua Belinha, no último Natal, e entrou no elevador do prédio a correr.
- Boa tarde! Hoje o nosso repórter está com ar super feliz! – Disse-lhe um vizinho do prédio.
- Sim! Vou ver a história de uma Mulher, a melhor Mãe que alguém poderia ter, publicada numa revista!
- Ah! Ganhou um prémio, foi isso? Mais uma das suas belas fotografias?
- Não! Ou melhor, sim! Mas não é isso o que me importa! O importante é que se não me tivesse dado a mão, aquela senhora, a minha Avó Mariquinhas, hoje eu não teria uma história tão bela para contar!
- ‘Manel, já lá estão todos! Prepara-te! A tua irmã Belinha é a primeira da fila para lhe autografares a revista.
Fotografia de ©Yuka Shevchenko
"Amor, cuántos caminos hasta llegar a un beso,
qué soledad errante hasta tu compañía!"
Pablo Neruda
Os olhos choraram
Enchendo o rio
Mas as mãos,
Moldaram-se num tálamo
De alguma água
Daquele que como um trilho,
Continuava correndo,
Os olhos já não choram,
Mas as mãos?
Ah, como os olham agora,
Como que guardando
O esboço de um sorriso,
Espécie de peixe
Em vias de extinção
Que saltou
Para o pedaço de água,
Afluente do rio,
Que as mãos retiveram
Deixando que o caudal
Continuasse a sua incessante busca.
Os olhos já secaram,
Mas as mãos?
Que lugar!
Guardiãs de bem quereres!
Os olhos estão já calmos,
Mas as mãos,
São viveiros!
E o rio?
Chegou ao destino,
E ao renascer, ali,
Onde as mãos o esperavam
Vai banhar-se,
Sentir o frescor salgado do mar,
Todo a brisa marinha,
Abrir-se-ão em concha,
O mais gracioso areal!
</style>
Vem a nostalgia que pousa, subtil, no colo. Olhar, emocionada, o percurso dum rio, daquelas duas margens que deixaram de ser paralelas. Não havia impossíveis para eles, por tão singulares serem.
Guardar na caixinha de biscoitos, a mais bonita história.
Sentir um odor doce, quando a abria.
Nela guardo os momentos deles, belíssimos, porque, sem mesmo saberem, sequer imaginarem, já estava a ser, em cada beijo por eles partilhado, concebida uma outra, [julgávamos], igual à deles.
………………
Fecha-se a caixa, aquela história única.
Talvez que se abra, um dia, quando não doer o plural em que nos tornámos, ou, ouso dizer, que sempre fomos.
Fotografia de © ioana petcu
Se nos tivéssemos navegado?
Se tivéssemos sido, em nós, viajantes?
Se houvéssemos dito que era tempo de outros oceanos,
de terras nunca antes visitadas?
Se tivéssemos sido a nossa escolha?
Se essa escolha tivesse o nosso nome?
Tanta pergunta!
Não queria devassar a letargia,
esse espaço que se dividiu,
que mudou,
que agora é:
o teu,
o meu.
Pensar que por momentos, estivemos tão perto,
Que semeámos desejos ao acaso
que se matizariam naturalmente...
Porque nos houvéramos prometido que seria assim.
Desnecessário o pousio.
A nada chamávamos “meu”.
A tudo chamávamos “nosso”,
Queríamos, como queríamos!
Fomos quimeras,
absorvemo-nos em gestos lentos,
demorados.
Acompanhámo-nos,
e,
ainda que só na [nossa] imaginação,
fomos:
Eu,
[e]
Tu,
Singulares!
Fotografia de © Yuka Shevchenko
Fotografia de © ioana petcu
Fotografia de © ioana petcu
Dez anos.
Não calculas o que aconteceu desde então, desde que disseste, depois de te manteres em silêncio todo aquele tempo, que “estavas pronto, que podias ir”.
Será que nos ouves, aí em cima? Todos os nossos silêncios, todas as nossas saudades?
Será que ouves todos abraços, todos os beijos que, tanto gostaríamos que fossem iguais aos teus, quando ao abraçares a mãe, nos abraçavas?
Onde quer que estejas, não deixes de nos olhar e desculpa continuarmos a pedir-te tanto, tanto!
Lembras-te quando, a brincar, nos dizias que iríamos sentir a tua falta?
Nós ríamos e dizíamos que não!
Olhamos as mãos, afagando ternamente aquela tua pergunta.
Choramos.
Imaginávamos lá como a saudade se tornaria tão incomensurável.
Imaginávamos lá a felicidade que era chegar lá a casa, agora, olhar o sofá, e, não ver assim, tão cheio de um vazio tamanho!
Nunca se está pronto, acredita.
Dez anos., Pai
Acredita que ainda nenhum de nós está pronto para te pensar e não conseguir dizer mais nada a não ser o quanto desejávamos que estivesses aqui.
Fotografia de © AUGEN-KLICK
Ver-te! Ainda que por um segundo
Imaginar que estás na sala...
Rindo, gargalhada cheia, sonora,
Intensa, transbordando alegre
A tua tão terna forma de amar!
Tu! Tão grande, tão gaiato, tão Pai!
Oh! Como dói saber o que é saudade!
Já sequei as lágrimas
Os meus olhos tornaram-se baços,
Secaram, fizeram-se desertos
E nem sombra dum oásis.
Serenamente, sem um adeus ou um até já
Olhos postos na tua mulher, companheira e mãe
A janela pediste para abrir,
Rindo, como só tu, boca cheia de alegria,
Esperaste que nos distraíssemos e...
Sorrateiramente... foste, Pai, embora.
Dói, saber o que é saudade!
E...
Mesmo sabendo que nos estás olhando
Imaginando-nos na sala, tentando
Rir, lembrando a tua gargalhada cheia,
A noite vem devagar, trazendo com ela um
NUNCA MAIS!
Dói, Pai, saber o que é saudade,
Aquela certeza de que, na sala, o sofá está vazio!