Sábado, 30 de Maio de 2009

 

 

Fotografia de ©Luís Bravo

 

Era exímio na arte de bem cuidar do jardim.

Tantas vezes o iam encontrar ajoelhado, acariciando uma folha, roçando a pontinha do dedo indicador com cuidado sobre a face da pétala de uma rosa.

Ao fim da tarde, no Verão, quando o sol já não apertava, a senhora descia e vinha sentar-se no banco e por ali ficava.

Por vezes permanecia calada, tricotando a vida que passara, desfazendo uns pontos, passajando outros. Ele sabia que ela gostava de se sentar ali, de olhar as flores.

Na hora de retornar a casa, ia acordá-la, de mansinho, dizendo que já estava anoitecendo e que ela se poderia constipar. A velha senhora levantava-se, subia as escadas e desaparecia, sem nunca deixar de lhe fazer um aceno, aquele “amanhã eu venho” de que ele gostava tanto, tanto!

Outras vezes? Outras vezes ela estava faladora e fazia perguntas que o faziam contar mil e tantas histórias das suas “princesas”!

-Olha, já viste? Aquela está mais murchita!

-Não, minha senhora! Ela está é a pensar na melhor forma de me convencer a mudá-la de sítio…

-Disparate! As flores não pensam! Eu estou a ficar velhota, mas olha que tu não me ficas atrás! Triste porque quer mudar de sítio! Tens cada uma!

-É verdade! Não vê que ali, naquele outro canteiro, está um girassol que não deixa de a olhar?

-Ai! Não querem lá ver? Agora as flores também se perdem de amores?

E era ver os dois a conversar.

Depois ela voltava para o seu mundo, sentada no banquinho e ficava a olhar, de olhos postos no longe…

O jardineiro continuava na sua lida e lá conversava com a sua “menina” e convencia-a que tinha que ficar naquele espaço um pouquinho mais, para que as suas filhinhas crescessem.

-Ah! Que linda! Matizada! Nunca tinha visto uma rosa assim! Mas aqui à volta só há rosas vermelhas! Como pode esta ter saído assim?

-Pois é, senhora! Sabe lá o que elas são capazes de fazer por baixo da terra! - E sorria, maroto.

-Quer que a corte e leva-a para a por numa jarra?

-Não! Nem penses! Sabes que aqui é que elas estão bem. Lá em cima morreriam, tal como eu, quando subo a escada, ao cair da noite…

O velho jardineiro olhou-a. Há muito que não a vinham visitar. Chegara a conversar com a mulher, em casa, como seria que ela se arranjaria, assim, tão só?

Havia dispensado a criada, os filhos nunca mais vieram e do senhor…apenas o lenço que ela trazia sempre preso com um alfinete, como se fosse uma jóia.

-Mas nunca lhe perguntaste nada sobre isso?

-Aquela senhora é de pouca conversa. Vive naquele casarão, e desde que o senhor se foi, a alegria desapareceu dos olhos dela. Chego a perguntar-me o que irá ser de tudo quando ela se for.

-Mas paga-te bem! Terá por certo quem cuide dela, dos dinheiros. E olha que não terá pouco, a ver pelo tamanho da casa, do sítio onde está.

-Pois se há, eu nunca vi por ali ninguém! E deixa-me ir, que já vão sendo horas e tenho a sebe para aparar.

 
Havia muitos carros estacionados defronte da casa.

Gente que ele nunca tinha visto, muita criança a passear pelo jardim, as janelas abertas e uns homens a conversar, a gesticular até que um lhe veio perguntar quem ele era.

-Trato deste jardim há um bom par de anos e como podem ver, tenho o maior orgulho nas minhas plantas.

-Que saibamos, as plantas não são suas!

-Maneira de falar! A senhora diz sempre que eu cuido tão bem das rosas que até pareciam que eram minhas!

-Pois, mas a senhora já cá não está e a casa vai ser demolida e…

-Como? A senhora já cá não está? Mas ainda ontem me disse que hoje voltava. Ela volta sempre!

Os homens olharam-no, entreolharam-se. Conhecer-se-iam assim tão bem?

O jardineiro ficou por momentos sem conseguir articular palavra!

“Acaso estaria aquela gente a pensar o quê?”
-Sempre me tratou com o maior respeito, sempre!

Incapaz de perguntar aquilo que mais receava que tivesse acontecido, olhou em volta, procurando o banco.

Vazio…
Não, vazio, não!

Pediu licença, deixou os dois a conversar, ainda os ouviu falar em guindastes, piscina para os miúdos, mas os seus olhos fitavam um pontinho branco.

Aproximou-se mais e viu então o lenço, preso ao alfinete.
Ao lado, havia uma folhinha de papel cuidadosamente dobrada.

Não quis saber se o olhavam, sequer nisso pensou. Sentou-se e abriu. Caíram-lhe duas pétalas da rosa matizada no colo…

 
 
Meu bom Amigo,
 

Eu disse que a rosa morreria se a cortasses tal como eu morria cada vez que eu subia a escada quando a noite chegava…

Não estranhes ver tanta gente aqui em casa! Provavelmente ouvirás que será demolida, transformada. Cuidei que pudesses continuar a ter as tuas flores. Foste um fiel companheiro das minhas horas.

Deixo-te o endereço de alguém que sempre tratou das minhas coisas. Ele te dará todas as indicações e ajudar-te-á para que tu e a tua mulher possam ter uma casa com um jardim.

Promete-me apenas uma coisa. Que conseguirás ter uma outra rosa matizada, pois que aquela outra, eu cortei, para levar comigo, quando percebi que havia chegado a hora de subir a escada.

Perdoa não te ter acenado nem te ter dito que voltaria.

Para onde vou, haverá um jardim, mas poderás ter a certeza que não será tão bonito nem tão bem cuidado como este o foi, por ti, e, rosas matizadas haverá apenas esta, que trarei sempre comigo.

Guarda esse casal de pétalas. “Sabes lá do que elas são capazes de fazer?”

Estou a ver-te sorrir, Amigo. Recordas-te daquela tua história? A graça que eu te achei!

Deixo-te o lenço e o alfinete.

És sem dúvida a pessoa mais indicada para ficar com eles, pois assim, quando os olhares, saberás que estarei sentada no banco, no teu jardim, a ver-te falar com toda a ternura com as tuas princesas.

Não chores, não sintas pena, porque parto feliz.

Trabalhaste para mim um bom par de anos. Quem te contratou foi o meu marido, e, penso agora, imaginando como vou terminar este meu recado, sem haver lugar a despedidas, que sempre me trataste por senhora, que nunca me perguntaste o nome.

Com muito apreço por todos estes anos de boa companhia, deixo-te um aceno que gostaria que guardasses como um "até já", tu, o único jardineiro que conheci que falava com as flores,

 
Rosa
 
 
 

Dobrou a folha com muito cuidado, pegou no lenço alvo de neve, quase tão alvo como os cabelos da senhora e saiu.

Na carteira, junto à fotografia da sua mãe, colocou as duas pétalas de rosa.

Ainda ouviu que por ele chamavam.
Não quis saber.

Não olhou para trás, não olhou as escadas. Levava com ele a imagem daquela que foi tão sua amiga, que o olhava, sentada naquele banco de jardim e quando chegou a casa, abraçou a sua mulher e chorou.

 

 

 

Outubro 2007

 



publicado por Cris às 01:20 | link do post | comentar | favorito

9 comentários:
De Paulo Mello a 31 de Maio de 2009 às 14:39
Cris, minha boa amiga, aqui lendo e sentindo entranhar-se na minha mente uma página onde se misturam ficção (?) e realidade, e onde sobressai uma musicalidade que é rica de pormenores, justamente por se fazer completa no mundo de quem se veste da mais genuína Poesia. Não sei ler-te com o olhar, Cris, por isso não sei falar com precisão daquilo que tu escreves... sei ler-te apenas com os sentimentos, estes mesmos que tu descreves nos teus registros. Descobri que ler-te é procurar não entender aquilo que tu escreves, mas apenas sentir o que escreveste. Difícil? Não! Apenas prazeroso!

Quanto àquele outro assunto... prometi a mim mesmo não tocar mais nele. Faz-me mal falar de saudade, de tristeza, de solidão. Aos poucos vou curar-me de tudo isto. Entrarei aqui apenas para visitar teu sítio e beneficiar minh'alma com teus registros.

Desejo ardentemente que tua semana seja produtiva em coisas boas, alegres, gratificantes, cada vez dias melhores em tua vida e dos teus.

Meu abraço fraterno em cumprimentos sinceros,
PMello



De Cris a 31 de Maio de 2009 às 20:08
Paulo,

Numa altura em que nem tudo corre como gostaria, por motivos que não cabem aqui, soube-me a um abraço amigo, este teu comentário.
Momentos há,(dou-me conta de que há muitos mais do que julgava) em que nos sabe tão bem um aconchego, uma conversa boa.
Foi o que aconteceu, enquanto te "ouvi".
Curioso. Costumo dizer imensa vez que mais do que entender o que o outro, o que estamos a ler, escreve, é bem mais importante, sentir!
A solidão (e é o que está atrás deste conto, a solidão de alguém que perdeu o mais importante que tinha, o companheiro) é dolorosa.
Esta senhora, tão gentil, encontrou, naquele jardineiro, o amigo, (ainda que ele achasse que não) com quem partilhava (sem que ele se tivesse apercebido) os momentos bonitos que viveu, outrora.
Não lhe importava a riqueza, a casa grande.
Importava-lhe o lencinho branco, importava-lhe a companhia dum jardineiro, aquela forma meiga e tão terna como ele cuidava as suas "princesas". Sorria quando ele com elas falava.
Tão importante a amizade, Paulo! Tão importante termos para onde correr, quando mais fragilizados. Tão importante saber que temos alguém e que esse alguém também nos tem!

Obrigada, Paulo.
Quanto ao "resto", fazes bem. Deixa que o tempo amanse, deixa!

Que a semana seja repleta de coisas boas, para ti, para o teu filhote.
Vem sempre que queiras. Eu gosto que venhas, claro que sim!

Um abraço amigo


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