Fotografia de © Cristina Mestre 2007
Quando vagueamos por aí, ao sabor de uma lembrança que deixamos que ondule, que queremos que se assemelhe a um mar, colhemos um pedaço de sol com que adornamos a face. Demoramo-nos o bastante para que germine o sorriso e no final do dia sentiremos a frescura de um momento: esperar pela noite e assistir a um dançado único! Seremos espectadores de uma lua que se desnuda, desvendando delicadamente a sua tez cor de pérola! Vê-la-emos graciosa, nos braços robustos do oceano azul, rodopiar numa pista atapetada de tanta satisfação.
É neste enlevo açucarado das palavras que nos despojamos do tempo, sentindo o doce toque daquelas pedrinhas roladas que nos trazem estes encontros bonitos que com tanta ternura nós vamos apanhando e guardando.
Fotografia de © Cristina Mestre 2008
Talvez que a lembrança se demore pela paisagem, tal como o tempo, quando se excluía de tudo, para se inebriar com a fantasia dum campo de mar…
Tépida a água daqueles rios que enterneciam as margens, que as juntavam. Aquecidos pelo sol, despiam caudais e festejavam a chegada do baile da lua.
Era o tempo em que a espera se tornava luminosa, enquanto a noite acabava de se aprontar, afinando a voz.
Belo o instante, belo assistir ao calar do silêncio.
Só a música e aquele bailado.
Só a calma e o estio e o iniciar duma viagem, como um cerimonial, uma antemanhã meio doce meio salgada que nasceria na ilusão de uma praia…
Fotografia de © Cristina Mestre 2008
Estarei descalça, embriagada de vontade de trazer a ansiedade da cor que experimentei, então.
Conseguirei pensar-te, quase ver-te, aí, nesse lado, passeando o silêncio pela mão…
Andarei de cá para lá, neste areal imenso, tentando arremessar para longe a solidão que é agora a minha doce companheira…
Se ouvirmos o ruído da espuma, não paramos.
Não nos concebo a olhar para trás.
Haverá longe, haverá distância.
Só faltará o que sentíamos. Faltará o passado prenhe da frase que nos acompanhava:
… Não mais sentir a falta da falta que sentíamos de nós!...
apesar da chuva, será sempre aquela, a minha frase favorita. apesar de tudo, não se gastou o sentimento. não há fins. creio nos interregnos. mereço deambular nessa terra de ninguém, pois que: "pela noite adiante, com a morte na algibeira, cada homem procura um rio para dormir."ou, como tu também disseste:"Cada sonho morre às mãos doutro sonho".
mostrei-te as mãos. entendi-te. acredita que senti, de novo, que voltava esta estúpida vontade de chorar, de fechar o livro, de cegar, de me aborrecer contigo, de guardar aquela frase favorita, mas, parei, quando me apercebi como as olhavas, dizendo delas, aquilo de que não fui capaz, e não ceguei, não me zanguei apenas as calei nas tuas para te escutar como merecias ser escutado:
"Que tristeza tão inútil essas mãos que nem sequer são flores que se dêem: abertas são apenas abandono, fechadas são pálpebras imensas carregadas de sono.
não vás já. espera só o tempo dum pedaço do poema que me lerias, omitindo o título que ambos sabíamos, mas que não ouso proferir:
não aguento este diálogo. falas tanto, tanto, mas a palavra existia, ainda que dissesses que não. era um peixe, duma outra cor, bem sei, mas era um peixe. dizias que não, mas continuavas, como eu, a acreditar nos teus olhos, tal como eu acreditava nos meus. ainda acredito. estão vivos, vêem, ainda que depois da bonança venha a tempestade.
não é por se dizer que se Ama o Outro que se prova o sentimento. antes de tudo é preciso sentir e eu, Eugénio, só queria ouvir... (atrevo-me a invadir o que sentes enquanto te calas e me escutas) será que também te chegou aquela estúpida vontade de chorar? será?
antes de tudo é preciso sentir e naquele momento só queria ouvir. foi assim, contigo?
vai, que "passaste os dias a pôr sílabas sobre sílabas. Dorme, estás cansado." acredita! "Espanta-me que estes (meus) olhos durem ainda, que as suas pedras molhadas se tenham demorado tanto a reflectir um céu extenuado em vez de aprenderem com a chuva a morder o chão."
vai, Amigo, que, ainda assim, aquela frase, proferida por Alguém, não menos importante que tu, não menos importante que eu, depois de tanto termos conversado, ainda é, de todas as que proferimos, minhas, tuas, e, era isto que te queria dizer, (não tivesses tu ido, antes do fim, ou será o início?...), a minha preferida.
estou a pensar no que disseste:
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.
só queria um regaço para que me deitasse, e, ao som da melodia das tuas pisadas sobre o areal, adormecesse. talvez que o sonho voltasse, sabes? talvez que ocupasse o lugar desta tempestade que não passa, não passa, não passa.
quando voltará a ter toda a importância o gesto, Eugénio? quando?
Nota:
Todos os poemas, todas as frases em negrito e itálico foram retiradas de alguns dos livros de Eugénio de Andrade.
Obrigada, Eugénio.
Lembras-te? Quando o tempo andava longe, tão longe, abstraído de tudo? Lembras-te que para pintar um céu, trepou para o horizonte?
Lembras-te de o vermos rir, por ter criado um azul tão forte que o estonteava?
Éramos dois e o tempo nunca se deu conta que foi ali que nos encontrámos, enfeitiçados pelo reflexo dum azul que ele, lá longe, criou, não imaginando sequer que o fizera, só para nós.
Fotografia de © Magda Marczewska
Corríamos sobre Abris,
saboreando cores.
Trincávamos tanto verde,
lambuzando-nos de vermelho.
No azul mergulhávamos,
aquecidos por um amarelo frágil.
Estendíamos o pensamento pelo Estio
olhando um firmamento quase negro
com salpicos de prata.
Deitávamo-nos sob Ocasos.
Perdíamo-nos a ver pousar o alaranjado
sobre um castanho doce,
descansando em tons dourados.
Repousávamos acendendo Invernos
juntávamos-lhes achas rubras,
víamo-las crepitar flamejantes
ao som dum branco que se deixava cair,
em flocos de algodão doce,
lá fora.
Não cansa pensar-vos.
Pudesse eu
fazer nascer Primaveras
de cada vez que vos olho.
Fotografia de © Ana Rita Pinto
Das árvores,
Cairiam folhas,
Letrinhas em forma de pétalas.
Daquelas que gostamos de sentir
Como quando se pisa a relva
Muito macia
Nos pastos,
Como se do céu
Se tivessem soltado,
Quais pedacinhos de algodão,
Por tão fofos!
O chão seria fértil,
A ponto das palavras se juntarem,
Florescendo em frases,
Formando poemas loiros,
Ou mesmo cor de papoila…
Se eu pudesse,
Diria ao sol
Para que,
Só hoje,
Conseguisse nascer pequenino
Com ternura de menino,
Alvo, rosado,
Abraçaria as árvores,
Com seus bracinhos roliços,
Como que pedindo mimo.
Elas deixariam cair folhas
Com tal ternura
Que formariam na terra,
Um colchão,
De poemas feito.
E, abanando docemente os ramos,
As árvores, inclinar-se-iam
Entoando canções de ninar.
E os pardalinhos,
Ao ouvi-las,
Viriam trinar com elas,
Melodias que uma princesa
Lhes ensinou,
E o sol,
Ainda menino,
Adormeceria feliz…
MADRIGAL
Tu já tinhas um nome, e eu não sei
se eras fonte ou brisa ou mar ou flor.
Nos meus versos chamar-te-ei amor.
"as mãos e os frutos"
Eugénio de Andrade
Fotografia de © William Manning/Corbis
Emoldurados naquele pedaço de noite, nada mais importava, senão matizar, com a única palavra que cabia entre eles, um desejo. Lançá-lo-iam às estrelas, depois. Mas antes, antes, iam vivê-lo intensamente!
Riam, pedindo que se dissessem o que já se haviam dito mil e uma vez, com tanto beijo, nas mãos, no rosto, na alma.
The Honeymoon © Corbis 1890-1900
ignoramos as horas,
ainda que leves...
calam-se as palavras,
emergem,
para que sejam só
dois corpos imersos
num sono único...
sou mar,
sinto-me mar,
e espero que naufragues...
abro-te os olhos,
descubro pérolas
que atiro fora...
é a ti que quero!
simulo que adormeço,
para que me olhes,
antes de te envolver
transforma-te em ondas,
vê como finjo que descanso,
mas só espero que naufragues
e que em mim te afundes...
ignoramos as horas,
ainda que leves,
para sermos os dois,
afastados de todas as palavras
talvez que elas nos inventem,
à superfície.
mas aqui, sou eu, tu,
a volúpia de nos termos...
...e nada, mas nada mais, nos importa!
Fotografia de © LGB 2008
Omito que poderá chover mais tarde,
Sobre as nuvens que então desenho,
Até cair num bem-estar mais do que granjeado
Na ponta dos meus dedos agora sossegados.
Não deixamos cair Outonos
Sobre as mãos
Nem adiamos Estios
Quando estamos juntos.
Acerco-me da maior janela,
Para desfrutar da mais bela paisagem,
A realidade a perder de vista...
Enquanto te procuro,
Ouço a voz,
O tilintar do orvalho sobre os pastos,
O canto das flores, em correrias,
Cabriolando sobre carreiros verdes...
Quando te vejo,
Ainda com o aroma do acordar nos ombros,
Estendo os meus olhos,
Até te alcançar os passos,
Até te tocar de leve,
Até te acompanhar,
Sentindo a frescura beliscar leve as nossas frontes...
E, quando já de volta,
Me dás o braço
Trazendo ramos de satisfação
Que vens pôr,
Como serenatas,
Debaixo da nossa janela,
Não deixamos cair Outonos,
Nem adiamos Estios,
Apenas nos sentamos,
Calmos,
Em bancos de Primaveras!