Não vou ali àquele espaço pois que não te concebo, na lembrança, ali. Imagino tão só um amontoado de mausoléus que nada dizem, nada.
Não eram os bens materiais importantes para ti, mas, a emoção de permanecermos todos juntos, para além de tudo…para além dum corpo.
Não importava onde ficarias, para os demais. Importavas-te connosco, tanto, até mesmo no dia em que chegou a hora de te separares do corpo, e ires, tu, apenas tu, sem que antes dividisses o teu sorriso em quatro partes iguais…
Guardo nesta caixa a que me deste, esse teu sorriso, e, quando a abro, quero lá saber que me julguem pelo facto de não ir àquele espaço…
Fotografia de Fotografia de © Vladan Doslic
Era tão precavida a tia Mari que deixou comprado o baú de Olinalá* onde deveriam colocar as suas cinzas, e ali estava, a meio da sala onde todos os que a amaram se tinham reunido para pensar nela.
A tia Mari teve uma grande amiga. Uma amiga com quem falava das suas tristezas e das suas alegrias, com quem tinha em comum vários segredos e um monte de lembranças, uma amiga que ficou sentada junto do cofrezinho sem falar com ninguém durante todo o dia e toda a noite que durou o velório. Ao amanhecer, levantou-se devagar e dirigiu-se para ele. Quando estava perto, tirou da sua carteira um frasco e uma colherzinha, levantou a tampa de madeira perfumada, e, com a colher, tirou dois bocadinhos de cinzas e pô-los no frasquinho. Fez tudo isto com tanto sigilo que quem estava na sala imaginou que se tinha aproximado para rezar.
Só foi descoberta por um par de olhos, à sua dona rendeu contas, depois de os ver arregalar de surpresa:
- Não te assustes – disse-lhe. – Ela deu-me licença. Sabia que me faria bem ter um pouco do seu aroma na caixa onde tenho as cinzas dos outros. Sempre que posso, levo um pouco dos seres a quem continuarei a amar depois de morrerem, e, misturo-os com os anteriores. Ela ofereceu-me a caixa de embutidos onde os guardo a todos.
Quando eu morrer, colocar-me-ão aí dentro e confundir-me-ei com eles.
Depois, que nos enterrem ou nos espalhem no ar, mas juntos.
* Olinalá: de Olinala, município e povoação do estado de Guerrero (México)
Nota de Rodapé
História retirada do livro “Mulheres de Olhos Grandes” de Angeles Mastretta.
Angelles Mastretta nasceu em Puebla, em 1949 e é um dos nomes mais importantes da actual ficção mexicana.
Imagem de © Ana Rita Pinto
Tanto para ver no prado rosado. Tanto lugar bonito.
O prazer de repousar, depois, na margem do riacho dos dedos.
Temos ainda tanto céu por descobrir!
Este dia não é menos importante do que aquele outro, Pai.
Fotografia de © Ana Rita Pinto
Tinhas razão, faltou dizer. O fogo de artifício continua com todas as cores que me ensinaste.
Queria dizer-te uma coisa que nunca te disse. Mas nunca vem a propósito. Quando ficas em silêncio muito tempo apetece-me quebrá-lo e dizer-te assim sem mais. Mas então sou eu que tenho medo. De não conseguir dizer senão outra coisa, se bem que próxima, e te conduza inevitavelmente ao engano. Então digo-te uma coisa qualquer para avaliar do teu estado de espírito e chego à conclusão que ainda não é tempo. Por vezes creio que já te disse sem querer, por outras palavras. Tu não ouviste ou não quiseste ouvir ou não achaste necessário prestar atenção, esforçares-te a responder. Quando for preciso vai ser tarde demais. Sim, é isso, se calhar é isso. É uma coisa para te dizer depois, quando já não estiveres aqui ao meu lado para a ouvires. Uma coisa do tipo: quando me quiseres eu já não vou estar aqui para te querer.
Fecho os olhos e vejo-te. Vens a mim quando te não quero. Há coisas que se não devem querer. Tu és uma delas, doce veneno.
Agora já não há segredos. Corremos sem saber se vamos a tempo de saltar. Se queremos.
Nesta existência precipitada, imprevisível. De noite. Pequenos nadas.
in ‘ Nos
teus
Pedro Paixão
(2.1. Ela...)
Fotografia de © G. Rossenbach/zefa/Corbis
(... pensa...5.1)
Ainda viviam com os pais. Já tinham um filho, mas a casa da Rua de Santa Margarida era grande. Que nem passasse pelo pensamento do pai, que eles sairiam dali.
Ele parecia sisudo, mas não era. Sabia rir, no tempo em que ainda gostava de viver, em que apostava tudo, porque tinha a certeza que ganhava.
Fora ela que o ensinara e ele queria mostrar-lhe o quanto isso o tinha feito feliz.
Ela? Amara-o logo. Aquele porte distinto, aquela expressão de olhar.
Ele? Filho de gente rica, que havia feito fortuna no Brasil, mas que regressara a Braga, cidade onde haviam nascido os bisavós.
Ele? Não olhou para trás, não ouviu o pai, irado, dizendo que se casasse, não iria ao casamento.
Ela? Que não fazia mal. Que o sogro haveria de os aceitar, quem sabe, um dia…
Amavam-se e era o quanto bastava para serem felizes para sempre.
Melhor, dizia ela! Seria um almoço, cá fora, ao som das gargalhadas do pai, dela, da mãe, dos irmãos, todos alfaiates de profissão, e, por devoção.
Ela? Aprendera a arte da agulha com o pai, com a mãe. Passou-lhes a perna. Desenhava modelos. Experimentava-os nela.
Os sogros gostaram de os ver singrar, sem nada pedir. E foram eles que pediram que regressassem à casa da Rua de Santa Margarida que, parecia maior, agora.
Ele? Queria dar-lhe o mais belo presente. Há muito que o desejava! Não via mais nada, senão a alegria dela, o sorriso que ela lhe ensinou.
Ele gostava de ir ver os campos, lá para os lados das Gavieiras, depois de sair do Banco, quando já não tinha mais escritas para fazer, e, enquanto ela ultimava os últimos pespontos e chuleios.
Ela? Conhecia-o melhor do que à agulha com que cosia os vestidos bonitos.
Ele? Esperou que a última cliente saísse, com um vestido concebido provavelmente para um pedido de casamento, e, desceram a rua.
Ela? Viu as árvores, viu aquele campo, viu tanto terreno para o filho brincar. Como é que iriam dizer que era ali que queriam construir o sonho deles?
Ele? Que vinha pensando nisso há tempo…Que falaria com o pai.
Ia ser o Natal, viria a família toda, seria mais simples convencê-lo.
Ela? Tinha clientes de Lisboa, muitas, cada vez mais. Queria ter uma escola. Sonho que alimentava desde garota.
Que ficasse quieto, que parecia ter bichos-carpinteiros! “As crianças eram lindas, quando dormiam…”
Ela? Sentou-se a seu lado, calma, muito segura. Puxou o garoto para bem perto de si, sentou-o no colo.
Caiu o silêncio naquela mesa, a abarrotar de olhares expectantes.
O petiz? Olhava os três, do alto dos seus dois anitos, e, nem se mexia, com a perna bem encostada à da mãe.
Ele? Nunca tinha reparado como o pai se tornava enorme, quando se irritava.
Ela? Pouco lhe importava a altura do sogro! Era só cortar mais pano!
Era Natal, ia ter a escola, iam realizar um sonho, e, poderia rir, tanto, como desde há muito não fazia, à vontade, como ela gostava.
A sogra, elegantíssima, fez sinal à criada que, sapientemente, saiu da sala.
O pai levantou-se, e, quis saber, onde tinha ido o filho ver os terrenos.
Onde? Mas ele estaria louco? Mas ali não havia nada, não era cidade!
Aquilo não passava de uma quinta, ou melhor, de um campo, onde só iriam passar carros de bois. Nas Gavieiras?
O miúdo tremia. Ela, envolvia-o num abraço, protegia-o, sussurrando-lhe dos presentes que o Menino Jesus lhe iria por, no sapatinho, pela manhã.
Onde já se vira, uma criança ali, àquela hora? E ela? A meter-se, sempre a falar! Muito falava! Bem achava que os dois nunca deviam ter casado!
Ele continuava, sentindo uma mão na perna dele, apoiando-o, incitando-o a prosseguir…
Que as Gavieiras iria ser, dali a uns anos, das melhores zonas da cidade.
Da cidade? Aquilo? Aquilo era um lamaçal! Mas que nem pensassem em tal!
A cadeira caiu, a família deixou de respirar, e, a casa da Rua de Santa Margarida tornou-se pequena, pequena, para os dois.
Fora de questão! Havia casas lindas, noutros lugares, até mesmo ali, na rua, que ideia a dele, de ir construir num pântano, num terreno lamacento.
Que ficasse muito claro! Filho dele, jamais, mas, jamais, lhe desobedeceria!
Ele? Levantou-se também, protegido por um olhar doce, mas firme, por tão decidido a realizar um sonho de garota, que era agora um sonho dos dois e de um petiz, mostrou um papel.
Ele, avançou e, completamente desorientado e, cego, por tão desautorizado, ele, o pilar daquela família, ele, que podia comprar a Rua de Santa Margarida, podia comprar todas as avenidas, tornou-se pobre, ao levantar a mão ao filho.
Transformou-se numa história de amor, uma das muitas que a minha mãe me contou sobre a casa onde o meu pai cresceu.
“ - Entendes agora, filha, porque te digo tanta vez que olhar aquele mosaico é ver um sonho sorrir?”
Leve o tempo.
Inquebráveis as palavras.
Fotografia de © Inna Merkish
Vidradas
Leves
Rodeavam ombros
Agarravam cinturas
Habitavam mãos
Tocavam bocas
Delineavam olhares.
Tomavam a forma de colar
Embelezando desejos
Como pérolas.