Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Fotografia de © Reggie und Ich
A ti eu sempre falava de mim!
Mas continua a ter a certeza:
Num sítio que ambos saibamos,
Olhando as certezas que trocámos:
Foi só nosso aquele passo de dança,
Habitará para sempre o lugarejo
De como os pirilampos brilhavam em sorrisos
Por não nos darmos conta de mais nada
Fotografia de © Ulrich Jaspert
Por vezes,
Ele apertava-lhe a mão com tanta força, tanta.
Choravam por dentro, não porque tivessem vergonha, não porque temessem que os olhassem. Até o tempo que sempre passava a correr, parara.
Queria-o ali, com ela. Queriam-se juntos.
Quando chamaram pelo seu nome, levantaram-se, ele primeiro.
E a mão, a mão que a apertava tanto, tanto!
Despiu-a, no vestíbulo. Devagar, assim, tal como ele sabia que ela gostava. E beijava-a muito e falava baixo, tocando-lhe o seio, afagando-o com todo o cuidado.
Era incapaz de o olhar por fora. Só por dentro, suplicando que ele lhe dissesse que estava ali, que não ia embora. Riam e o riso a cair-lhes no medo imenso que sentiam.
Queria sentir a dor da mão dele na dela com tanta força, tanta, e, não a outra dor.
E o tempo insistia em ficar quieto, tão quieto como os olhos daqueles outros que iam olhando o monitor, que falavam, que lhe mexiam no seio, o apertavam.
Quando ouviram que poderia ficar sossegada, que não havia nada a temer, que se esquecesse daquele dia, só quis a mão dele, aquela mão que apertava agora ainda mais a sua, tanto, tanto.
Ele levou-a para o vestíbulo e devagar, assim, tal como só ele sabia que ela gostava, vestiu-a.
Não a deixava que o olhasse por dentro. Não a deixava ver o quanto ele temera, como o seu coração batia, o quanto corria, o quanto chorava. E beijava-a muito e falava baixo, tocando-lhe o seio, afagando-o com todo o cuidado.
Foi então que ela o olhou, inteiro! Não se disseram nada senão um abraço apertado, tão mais apertado, que aquela mão, a dele, que apertara a sua, tanto, tanto…
E o tempo, já pronto para iniciar uma nova corrida, sentindo a força de tal abraço, ali, naquele vestíbulo, não hesitou. Deitou-se no carinho de duas mãos apertadas…e adormeceu.
Fotografia de © Andrea Sagawe
Falavas-me dum livro, bom de ler e reler.
Fazes lá ideia das vezes que o pousaremos, junto ao vaso, esse, que ficará silencioso, que se tornará todo ouvidos, no parapeito da janela da casa que construiremos, quando não nos dermos conta que sorrimos, enquanto nos vestimos de tanta carícia bonina, com o som dos pássaros verdes e azuis que nidificarão nos ramos da árvore frondosa que espreitará, curiosa, a nossa história.
Ainda que não saibamos que é baseado em nós que aquele livro será escrito, por ela, enquanto for crescendo, se for cobrindo de folhas verde esperança, faremos marcadores com as pétalas de rosa encarnadas que nos vamos dar.
Festejaremos cada folha e com elas marcaremos os parágrafos mais belos!
Seremos felizes quando no livro pegarmos, todo ele pleno do aroma que daquela cor rubra advirá, que será para nós, já que quando nos despirmos, saber-nos-á a tanto, esquecermo-nos do prazer que teremos, por irmos colher, unos, aquele ensejo.
Aprendemos, quando nos esquecíamos, quando nos negávamos olhar, a fixar os movimentos ternos, quando para nós desnudávamos a alma, nos desvendávamos.
Julgávamos – nos desatentos, mas, aprendemos, todas as vezes que nos imaginámos a procurar em nós as marcas do tempo imaculado, a semeá-lo no colo, a vê-lo crescer, para que, então sim, nos completássemos, na época em que sequer sabíamos que íamos existir.
Não olhemos para mais nada, nem nos importemos com o tempo que fará, fora do mês que depois habitaremos.
Não nos vamos distrair com a árvore. Ouçamos apenas a melopeia dos pássaros que a habitam, então já pais de outros mil, ainda mais coloridos.
Não vamos espalhar qualquer preocupação no tempo que ainda poderá faltar para nos unirmos.
Não nos neguemos pois que saberemos naquele instante que o verão terá chegado.
Eu nasço em cada dia que as nossas vontades se encontram.
Existo agora, absoluto. É para ti que corro pois que é em ti que me confio.
Respiro cada lugar do teu corpo, descanso nele o meu.
Consente-me, e, habitar-te-ei.
Os nossos olhares serão esposos e este fim de tarde será eterno.
Ela ia humedecendo serenamente o céu-da-boca, com aquele licor de palavras, sentindo como ele se lhe exultava ameno pela planície rosada da língua, polvilhando-a de juventudes.
Não era um beijo, era a nascente dum anseio que lhe serpenteava a emoção, sensibilizando-lhe todos os sentidos, inundando-a de movimentos que até então apenas lhe passeavam os lábios em sonhos…
Conceberam todos os filhos enquanto se embalaram em cada virar de maré, enquanto folhearam felicidades singulares, num areal imenso, emoldurado por um mar que reflectia as imagens que esboçavam, transformando-as em estrelas.
Não estranhavam que ela pela praia permanecesse, horas a fio, tão quieta.
Os mais velhos lembravam a história, de como era tão traiçoeiro o mar, quando lhe roubara a maior felicidade.
- Ah, Tóino! Tu é que és um homem de sorte! Nós com aquele mulheraço não passávamos tantas horas no mar!
Ele ria, mas não adiantava conversa. Nem parecia igual a eles, tal o amor que tinham um pelo outro! Nunca tiveram filhos, mas, nunca o ouviram queixar-se por isso!
- Não temos filhos porque Deus assim o quis! Mas estamos juntos! E essa felicidade ninguém nos tira!
Sempre que partiam para a faina, ela ficava assim, tal como agora, a olhar o mar, como se ouvisse o seu companheiro, como se lhe dissesse que o amava, e que o esperaria e o abraçaria sempre, sempre, como se fosse a primeira vez!
Quando voltavam da faina, ela era a primeira a correr, a abraçar o seu amor, a arrumar as redes, espalhando sorrisos orgulhosos por ser aquele o maior tesouro que Deus lhe dera!
Quando, naquele fim de tarde, a embarcação dele não chegou, ninguém lhe soube explicar a razão porque ele decidira ficar mais tempo.
Ia ser feia a borrasca! O tempo não estava para brincadeiras, não alvitrava nada de bom!
Com aquele vento, com as ondas tão altas, ninguém se aventurava a ir procurá-lo.
Que ele era experiente, que conhecia todos os sítios e que voltaria, no dia seguinte, quando a tempestade amainasse.
E nunca mais a ouviram cantar, a espalhar sorrisos pela areia.
Foi como se tivesse sido levada também pelo mesmo mar para se unir ao seu tesouro.
E atrás dos dias, vieram os anos que também foram passando, passando, lançando ao mar redes cheias de espera!
- Coitada! O mau tempo levou-lhe o homem. Nunca mais falou com ninguém! Os ganapos têm medo dela! Mas ela nem dá por eles, a pobrezinha!
Cá para nós está louca! Fica horas esquecidas a olhar para o mar, a olhar, a olhar!...
Cada onda que lhe vinha afagar os pés descalços trazia-lhe a voz de madrepérola, trazia-lhe os dias de ouro, o seu tesouro. Era ali que tinha aprendido a viver, desde que o oceano lhe levara o companheiro.
Era ali que gostava de ficar. Abria as janelas do fim de tarde e deixava que o néctar feiticeiro a alagasse de torrentes de recordações do dono dos seus sonhos, a cada volteio de maré!
Com elas vestia os lábios, com elas cobria o momento em que começou a fazer da sua vigília um sonho bonito! Aspirava dele o som dos passos, perdia-se no almejo de beber daquele licor e renascia no imenso areal, cada vez que o horizonte a olhava, tão cheio de azul, tão terno!
Era a voz daquele contemplar que a respirava, que continuava a descansar nela, que lhe percorria os lábios, delimitando o seu espaço com a mais bela história!
Depois de cobrir todos os outros dias, sentou-se ao seu lado, e, passando-lhe o braço pela cintura, puxou-a para si.
- O teu tesouro encontrou um fim de tarde e ficou a ajeitá-lo, a prepará-lo para ti. Pediu-me que te levasse, que a faina foi longa, que já está na hora de descansar o corpo no teu e que hoje és tu que vais ter com ele.
Ela sorriu. Bem sabia que ele a esperava! Iam viver-se, beber pelo mesmo copo, saciar a fome com tantos beijos, embalar-se em tantos virar de marés!
.....
- Eu gosto é desta vossa aldeia! Este cheiro do mar, esta praia! Deve ser dos lugares onde o oceano é mais azul! E aquelas rochas? Já viu a quantidade de gaivotas que lá vai poisar?
Não ia contar-lhe a história. Julgá-lo-ia louco! E, também, quem é que ainda se lembrava do seu amigo Tóino que um dia o mar levou? E de como a pobre da mulher acabou por morrer de tanto desgosto? Nã’!...Deixá-lo ir…
- Quem sabe? – Respondeu o velho, sentado no paredão. – Quem sabe, estão?
Abril de 2006
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