Fotografia de ©Luís Bravo
Tantas vezes o iam encontrar ajoelhado, acariciando uma folha, roçando a pontinha do dedo indicador com cuidado sobre a face da pétala de uma rosa.
Ao fim da tarde, no Verão, quando o sol já não apertava, a senhora descia e vinha sentar-se no banco e por ali ficava.
Por vezes permanecia calada, tricotando a vida que passara, desfazendo uns pontos, passajando outros. Ele sabia que ela gostava de se sentar ali, de olhar as flores.
Na hora de retornar a casa, ia acordá-la, de mansinho, dizendo que já estava anoitecendo e que ela se poderia constipar. A velha senhora levantava-se, subia as escadas e desaparecia, sem nunca deixar de lhe fazer um aceno, aquele “amanhã eu venho” de que ele gostava tanto, tanto!
Outras vezes? Outras vezes ela estava faladora e fazia perguntas que o faziam contar mil e tantas histórias das suas “princesas”!
-Não, minha senhora! Ela está é a pensar na melhor forma de me convencer a mudá-la de sítio…
-Disparate! As flores não pensam! Eu estou a ficar velhota, mas olha que tu não me ficas atrás! Triste porque quer mudar de sítio! Tens cada uma!
-É verdade! Não vê que ali, naquele outro canteiro, está um girassol que não deixa de a olhar?
-Ai! Não querem lá ver? Agora as flores também se perdem de amores?
Depois ela voltava para o seu mundo, sentada no banquinho e ficava a olhar, de olhos postos no longe…
O jardineiro continuava na sua lida e lá conversava com a sua “menina” e convencia-a que tinha que ficar naquele espaço um pouquinho mais, para que as suas filhinhas crescessem.
-Ah! Que linda! Matizada! Nunca tinha visto uma rosa assim! Mas aqui à volta só há rosas vermelhas! Como pode esta ter saído assim?
-Pois é, senhora! Sabe lá o que elas são capazes de fazer por baixo da terra! - E sorria, maroto.
-Não! Nem penses! Sabes que aqui é que elas estão bem. Lá em cima morreriam, tal como eu, quando subo a escada, ao cair da noite…
O velho jardineiro olhou-a. Há muito que não a vinham visitar. Chegara a conversar com a mulher, em casa, como seria que ela se arranjaria, assim, tão só?
Havia dispensado a criada, os filhos nunca mais vieram e do senhor…apenas o lenço que ela trazia sempre preso com um alfinete, como se fosse uma jóia.
-Aquela senhora é de pouca conversa. Vive naquele casarão, e desde que o senhor se foi, a alegria desapareceu dos olhos dela. Chego a perguntar-me o que irá ser de tudo quando ela se for.
-Mas paga-te bem! Terá por certo quem cuide dela, dos dinheiros. E olha que não terá pouco, a ver pelo tamanho da casa, do sítio onde está.
-Pois se há, eu nunca vi por ali ninguém! E deixa-me ir, que já vão sendo horas e tenho a sebe para aparar.
Gente que ele nunca tinha visto, muita criança a passear pelo jardim, as janelas abertas e uns homens a conversar, a gesticular até que um lhe veio perguntar quem ele era.
-Trato deste jardim há um bom par de anos e como podem ver, tenho o maior orgulho nas minhas plantas.
-Maneira de falar! A senhora diz sempre que eu cuido tão bem das rosas que até pareciam que eram minhas!
-Pois, mas a senhora já cá não está e a casa vai ser demolida e…
-Como? A senhora já cá não está? Mas ainda ontem me disse que hoje voltava. Ela volta sempre!
Os homens olharam-no, entreolharam-se. Conhecer-se-iam assim tão bem?
O jardineiro ficou por momentos sem conseguir articular palavra!
Incapaz de perguntar aquilo que mais receava que tivesse acontecido, olhou em volta, procurando o banco.
Pediu licença, deixou os dois a conversar, ainda os ouviu falar em guindastes, piscina para os miúdos, mas os seus olhos fitavam um pontinho branco.
Não quis saber se o olhavam, sequer nisso pensou. Sentou-se e abriu. Caíram-lhe duas pétalas da rosa matizada no colo…
Eu disse que a rosa morreria se a cortasses tal como eu morria cada vez que eu subia a escada quando a noite chegava…
Não estranhes ver tanta gente aqui em casa! Provavelmente ouvirás que será demolida, transformada. Cuidei que pudesses continuar a ter as tuas flores. Foste um fiel companheiro das minhas horas.
Deixo-te o endereço de alguém que sempre tratou das minhas coisas. Ele te dará todas as indicações e ajudar-te-á para que tu e a tua mulher possam ter uma casa com um jardim.
Promete-me apenas uma coisa. Que conseguirás ter uma outra rosa matizada, pois que aquela outra, eu cortei, para levar comigo, quando percebi que havia chegado a hora de subir a escada.
Perdoa não te ter acenado nem te ter dito que voltaria.
Para onde vou, haverá um jardim, mas poderás ter a certeza que não será tão bonito nem tão bem cuidado como este o foi, por ti, e, rosas matizadas haverá apenas esta, que trarei sempre comigo.
Guarda esse casal de pétalas. “Sabes lá do que elas são capazes de fazer?”
Estou a ver-te sorrir, Amigo. Recordas-te daquela tua história? A graça que eu te achei!
Deixo-te o lenço e o alfinete.
És sem dúvida a pessoa mais indicada para ficar com eles, pois assim, quando os olhares, saberás que estarei sentada no banco, no teu jardim, a ver-te falar com toda a ternura com as tuas princesas.
Não chores, não sintas pena, porque parto feliz.
Trabalhaste para mim um bom par de anos. Quem te contratou foi o meu marido, e, penso agora, imaginando como vou terminar este meu recado, sem haver lugar a despedidas, que sempre me trataste por senhora, que nunca me perguntaste o nome.
Com muito apreço por todos estes anos de boa companhia, deixo-te um aceno que gostaria que guardasses como um "até já", tu, o único jardineiro que conheci que falava com as flores,
Dobrou a folha com muito cuidado, pegou no lenço alvo de neve, quase tão alvo como os cabelos da senhora e saiu.
Na carteira, junto à fotografia da sua mãe, colocou as duas pétalas de rosa.
Não olhou para trás, não olhou as escadas. Levava com ele a imagem daquela que foi tão sua amiga, que o olhava, sentada naquele banco de jardim e quando chegou a casa, abraçou a sua mulher e chorou.
Outubro 2007
Tão belo, cheio de cor. Tão belo, cheio de música, pleno de finais da tarde, pleno de noites para se bailar na eira, ao som dum acordeão, duns ferrinhos, duma viola braguesa, dum cavaquinho.
Demoramo-nos por aqui, onde o tempo nos dá o braço, nos puxa, nos rodeia a cintura e nos encanta, ausente de pressa.
Fotografia de © Fernanda
Queria ser vilarejo,
Aldeia de casas caiadas,
Sardinheiras nas janelas,
Cheiro a flor de campo pelo chão!
Ser a fonte,
Beber de água,
Ser ribeirinha a correr,
Regadio de muitos prados.
Queria ser o “bom dia!”,
Saudação bonacheirona,
Queria ser banco da venda,
Ser conversa,
Ser velhinho,
A sua boina,
Ser o grupo que ali se encontra,
Um jogo de dominó,
Uma boa gargalhada,
Ser uma história de avó,
Alvos fios de cabelo,
Ser semblante enrugado,
Ser olhos, ouvidos de neto…
Ser o sabor do estio,
O sol deitado p’los muros,
O chiado de duas rodas,
O cantar de carros de bois,
Ser o portão de uma quinta
Aberto de par em par,
Ser muitas arvores de fruto!
Ser o recreio de escola,
Ser meninos a correr,
Ser uma cantiga de roda,
Meninas de cabelo aos cachos,
Ser a alegria de uma boneca de trapos
Ser fisga de rapazinho,
Ser um pássaro, ser um ninho.
Ser tanque de água gelada,
Ser roupa branca a secar.
Queria ser feira,
Ser toalha,
Cântaro de barro,
Roupa interior colorida,
Gaiola de passarinho,
Ser morena,
Ser trigueira,
Ser tamancos, ser sapatos,
Chinelo de meter o dedo,
Ser tecidos,
Ser cadeiras, escaninhos,
Armários, mesas, panelas,
Discussão de lavradeiras,
Cestos de vime entrançado,
Ser a foice,
Ser ancinho,
O cabo de uma enxada,
Alguidares, jarros e loiça,
Vasos a abarrotar de flores,
Bebé no meio de mantas.
Ser domingo,
Saída da missa,
Ser chão do adro da igreja,
Um bonito fato engomado,
Ou vestido vindo da França…
O casamento a preceito,
Boda à sombra da latada,
Ser riso da jovem casada,
Ser dela o noivo bonito,
O galanteio guloso,
Uma flor na lapela.
Ser desejo, ser anseio,
Da vontade que não acaba
Ser só dele, dali a nada…
Queria ser um Arraial,
Foguetes de muitas cores,
Mesas com bancos corridos,
Tendinha de pano-cru.
Ser cheiro a sardinha assada,
Pão ensopado em azeite,
Vinho a pintar a tigela,
Boroa de forno de lenha,
Fêvera a grelhar no carvão…
Queria ser festa animada,
Um coreto engalanado,
Um rancho de folclore,
Uma chula, um vira do Minho,
Ser a dança ou rodopio,
Ser andar de braço dado,
Ser voz da rapariga animada
O olhar de moço cobiçado
Um beijo dado à socapa,
Ser lenço de namorados.
Ser ainda a última cantiga,
Ser as “santas noites!” a todos,
A porta da casa encostada,
Ser do sono a recompensa…
Ser o silêncio satisfeito
Ou céu pejado de estrelas.
Eu queria ser madrugada,
O galo a cantar no poleiro,
O chilreio da andorinha,
Ser povoação, ser um largo,
Ser aquele vilarejo,
Ser todas as casas branqueadas,
Um gato a dormir no colo,
A cortina da janela,
Ser caminho,
Ser um passeio.
Eu queria ser um ano,
Ser um mês,
Ser só um dia,
Ser uma hora ou um minuto,
Ou ainda que por menos tempo,
Ser vida a andar com vagar,
Bordada a mil e uma cor,
Na barra de um avental!
Nunca te disse das conversas que tive com ele. Falávamos tanto de ti! Nunca te revelei os pedidos que me fez, enquanto me ia dizendo onde ficaria tudo de que poderias precisar, depois, quando ele fosse embora.
Falámos de tudo! Falámos até do que nem ouso revelar a mim mesma.
Perguntaste uma vez porque gostava tanto de ficar a olhar-te?
Fotografia de © - Fons –